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razões para votar "não" na
consulta
que pretende desarmar a população e
fortalecer o contrabando de armas
e o arsenal dos bandidos
Jaime
Klintowitz
Montagem
sobre fotos de Paulo Vitale
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Nas
páginas seguintes, VEJA alinha sete razões pelas quais julga
correto votar NÃO no referendo sobre o comércio de armas de fogo
convocado para o próximo dia 23. O voto no referendo é obrigatório,
como nas eleições. O Estado brasileiro vai fazer a seguinte pergunta
aos cidadãos: "O comércio de armas de fogo e munição
deve ser proibido no Brasil?". VEJA acredita que a atitude que melhor
serve aos interesses dos seus leitores e do país é incentivar
a rejeição da proposta de proibição. O sucesso
de uma consulta popular deriva, antes de mais nada, da correção
e da honestidade da questão a ser respondida pelos cidadãos.
A pergunta que será feita no referendo das armas é um disparate.
Ela ilude o eleitor. É uma trapaça, pois, mesmo que o SIM vença
por larga margem, "o comércio de armas de fogo e munição" no
Brasil vai continuar sendo exercido com todo o ímpeto pelo contrabando
em nossas porosas fronteiras e pelos eficientes agentes do mercado negro –alimentado
em grande parte pelas próprias autoridades policiais encarregadas de
desbaratá-lo.
A
Suíça, país que praticamente é governado
por referendos –já fez 531 desde 1848 –,
tem como premissa básica de uma consulta popular
que seu resultado seja impositivo. O que isso significa?
Significa que não se pode correr o risco de
a escolha produzida por meio de um referendo não
ter efeito prático imediato, pois nesse caso
se está desmoralizando o próprio povo,
e não alguns poucos parlamentares eleitos para
fazer leis em seu lugar. O povo não pode ser
exposto ao ridículo. Por essa razão,
os suíços aprenderam a não submeter
a consultas populares questões cuja efetivação
dependa da concordância de outros países,
grupos de interesse capazes de tornar o voto popular
inócuo. Para funcionar, o referendo da proibição
do comércio de armas no Brasil precisa da concordância
de outros países (que vendem armas ilegalmente
aos bandidos brasileiros) e de grupos particulares
de interesse (os criminosos e seus asseclas na polícia).
Certo como os impostos e a morte, os vendedores ilegais
de armas continuarão alimentando o arsenal dos
bandidos com equipamentos de destruição
cada dia mais poderosos.
Jeff Mitchell/Reuters
ARMAS
QUE NÃO MATAM
Loja do Texas: nos Estados
Unidos, há quase uma
arma por habitante, mas o índice
de crimes violentos caiu pela
metade nos últimos dez
anos
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Os
suíços veteraníssimos dos referendos
aprenderam também a não pedir ao povo para
votar em questões complexas, que exijam competência
técnica e estudos detalhados para saber o que é certo
ou errado. Essa lição ajuda a iluminar
outro erro estrutural do referendo das armas a ser proposto
no Brasil. A pergunta "O comércio de armas
de fogo e munição deve ser proibido no
Brasil?" esconde uma enorme complexidade. Pedir às
pessoas que respondam sim ou não a essa pergunta,
além de ser inócuo, como se viu, reduz
um problema social grave ao que parece ser apenas uma
disputa entre pessoas de índole pacífica
(os antiarmas) e pessoas belicosas (os pró-armas).
Obviamente, não é nada disso. Nem as pessoas
que possam se entusiasmar com o voto SIM na proposta
de consulta popular são todas elas exemplos de
civilidade e ordem nem os optantes pelo NÃO são
brasileiros ávidos por correr às lojas
em busca da última Magnum .357 ou de outra arma
de fogo. O que torna o referendo das armas um erro em
sua essência é justamente fazer pouco da
boa-fé dos brasileiros que sofrem com o banditismo.
O referendo é um despiste, uma tentativa de mudar
de assunto, de desviar a atenção das pessoas
do mal que realmente as atormenta: o banditismo. Pior
ainda. Como uma possível vitória do SIM
não terá efeito positivo algum –ao
contrário, vai ajudar a aumentar ainda mais o
poder de fogo dos bandidos –, as pessoas vão
se sentir culpadas pelos crimes que continuarão
acontecendo. No campo pessoal, essa angústia foi
exemplarmente aliviada pela escritora americana Susan
Sontag, morta no ano passado. Sontag denunciou a noção
cruel então dominante de que o câncer seria
uma doença auto-inflingida a que pessoas emocionalmente
amargas e ensimesmadas estariam mais propensas.
A
maneira como a pergunta do referendo foi formulada é,
em si, desonesta. "Se me pedissem para formular
a questão do referendo de modo que o resultado
fosse favorável ao desarmamento, eu teria feito
exatamente a frase que será apresentada aos
eleitores", diz José Paulo Hernandes, diretor
de pesquisa da Gallup Organization. Como profissional
de uma empresa de pesquisas de mercado, Hernandes tem
de se preocupar em fazer perguntas que não provoquem
respostas distorcidas do público pesquisado.
Uma das regras é que a questão não
pode ter palavras com conteúdo emocional forte.
Ao juntar "armas" e "proibição",
os autores do referendo cometem esse deslize. Como
o brasileiro está acostumado a relacionar armas
com a criminalidade que assola o país, sua tendência
natural é dizer sim à proibição,
sem questionar se a medida serve para reduzir a violência.
Ninguém
de boa-fé pode ser favorável à venda
indiscriminada de armas de fogo. A idéia de
um planeta sem armas é uma deliciosa utopia.
Ninguém pode também se opor a ela desde
que John Lennon pediu que se desse "uma chance à paz".
O desastre é que o referendo do dia 23 não
será um passo na direção dessa
utopia. Se vencer o SIM, ele apenas vai desequilibrar
ainda mais o balanço de forças entre
as pessoas comuns e os bandidos –a favor dos
bandidos. "As mazelas da insegurança nacional
não decorrem do excesso de armas nas mãos
da população, mas de uma polícia,
um sistema judicial e prisional ineficientes",
diz José Vicente da Silva Filho, ex-secretário
nacional de Segurança Pública. Para lutar
contra o crime, o Brasil dispõe de meio milhão
de homens nas polícias Militar, Civil e Federal.
Não é pouca gente. Nas principais cidades
brasileiras, a proporção entre policiais
e população é semelhante à de
Nova York. Os policiais brasileiros estão entre
os mais improdutivos do mundo. No tempo gasto por eles
para esclarecer um caso, seus colegas americanos desvendam
nove e os ingleses resolvem catorze. As várias
forças policiais não trabalham em conjunto,
não existe um bom sistema de troca de informações
criminais entre os estados e é difícil
e raro expulsar policiais corruptos das corporações.
A Justiça condena poucos criminosos por dois
motivos. Primeiro porque está sobrecarregada
de processos por causa da escassez de juízes.
Segundo porque em geral o trabalho de investigação
da polícia é malfeito.
O
poder público brasileiro tem uma larga tradição
em abster-se de enfrentar os problemas de forma realista
e racional para buscar soluções no mundo
do faz-de-conta. São planos que prometem "matar
o tigre com uma bala só", como dizia o
presidente Fernando Collor de Mello a respeito da inflação.
A solução "bala mágica" foi
usada várias vezes contra a inflação
e nunca deu certo. Só funcionou quando o Plano
Real optou pela racionalidade e aceitou a existência
de um mundo real do lado de fora dos gabinetes de Brasília.
O referendo carece dessa racionalidade. Cria um problema
falso (o excesso de armas no Brasil) e uma solução
enganosa (acabar com as armas legalizadas) de forma
a evitar a questão real (a criminalidade e a
ineficiência da política). Em outras palavras,
em lugar de enfrentar o problema, finge-se que ele
não existe. Pior é que somos reincidentes.
Em 1998, para combater o desmatamento na Amazônia,
que repercutia negativamente no mundo, em vez de fiscalizar
e reprimir as madeireiras ilegais, o governo instituiu
o registro das motosseras, que foram equiparadas às
armas de fogo. O governo colocou o país para
dormir tranqüilo com a medida. Resultado: nos
cinco anos seguintes, desmatou-se na região
o equivalente a três Bélgicas. No lugar
das motosserras, proibidas, os desmatadores passaram
a usar tratores em sua faina destrutiva.
O
próprio nome da campanha –pelo desarmamento –é enganoso.
O título tem apelo popular, mas não traduz
com fidelidade o que está sendo proposto. Não
se trata de uma consulta sobre o desarmamento, mas
a respeito da proibição ou não
do comércio de armas. Restrições
mais severas quanto a compra, posse e porte de armas
já foram adotadas pelo Estatuto do Desarmamento,
em vigor desde 2003 –e não estão
em jogo. "Gasta-se um instrumento fundamental
da democracia, o referendo, para discutir um tema superado
pelo próprio estatuto", diz Hugo Leal,
secretário de Justiça e Direitos do Cidadão
do Rio de Janeiro.
Há 2,5
milhões de armas legalmente registradas em mãos
de cidadãos comuns. Em termos porcentuais, significa
que 1,4% dos brasileiros tem uma arma, que pode ser
uma espingarda de caça, comprada num estabelecimento
comercial devidamente legalizado, e a registrou nos órgãos
oficiais. É contra essas pessoas que está sendo
brandido o referendo. Na falta de qualquer outra estratégia
real, que enfrente o crime e a corrupção
policial com persistência, surgiu a solução
da democracia direta que fará muito barulho
por nada. É mais uma oportunidade perdida.
O
TRUQUE DA PERGUNTA
José Cruz/ABR
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No
dia 23 de outubro, os brasileiros serão
chamados às
urnas para responder "sim" ou "não" à seguinte
questão:
"O
comércio de armas de fogo e munição
deve ser proibido no Brasil?"
Metade
do sucesso de uma consulta popular vem da correção
e seriedade com que a questão é formulada.
A pergunta do referendo do dia 23 de outubro é um
disparate. Ela reduz um problema social complexo
a uma simplória questão comercial
A
pergunta do referendo de 23 outubro poderia
ser formulada de modo mais honesto e realista
da seguinte maneira:
"O
Estado brasileiro pode tirar das pessoas
o direito de comprar uma arma de fogo?"
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Os
bandidos, como se sabe, são fora-da-lei. Já é ilegal
matar, e eles matam. É ilegal roubar, e eles
roubam. Se o comércio de armas se tornar ilegal,
os bandidos vão continuar fortalecendo seu arsenal
no mercado negro como sempre fizeram
Jorge William/Ag. Globo
O
CRIME ARMADO ATÉ OS DENTES
Arsenal apreendido no Rio de Janeiro: há 8
milhões de armas nas mãos de
bandidos no país |
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