Domingo, 3 de agosto de 2003
Sob
o império
da lei
JOÃO UBALDO RIBEIRO
Ainda
meio inseguro quanto à compreensão
do que pretendo escrever abaixo, taquei o título
aí em cima e continuo inseguro, embora um pouco
menos. O título parece com os dos filmes de caubói
de antigamente, quando cidades do tempo do bangue-bangue
nos Estados Unidos viviam entregues a bandidos que usavam
tiros até para matar baratas (Glenn Ford uma vez
matou uma, enquanto relaxava numa banheira, com o inseparável
Colt 45 ao lado; assisti pessoalmente, embora não
lembre o título do filme) e temo que o que vou
dizer seja tido como uma exortação à transformação
dos nossos grandes centros urbanos em cidades do faroeste.
Mas
claro que não farei uma exortação
desse tipo e a razão é bastante simples.
Em primeiro lugar, o que parece não ter importância
alguma, sou contra a violência. Em segundo lugar,
menos um pouco desimportante, estamos há muito
tempo em falta de mocinhos, em todos os níveis
de Governo. E, agora sim, importante, já vivemos
nessa situação há muito tempo. Somos
cidades de faroeste, diferençadas apenas por detalhes,
como carros e motocicletas, em vez de cavalos, e a ausência
de coldres recheados à mostra. De resto, basta
pensar e ver que, em cidades onde morre mais gente baleada
do que em países em guerra, só podemos
ser uma espécie de faroeste.
Já nos acostumamos e por isso mal notamos. Quem
nota e pode, vai morar em fortalezas ou complexos penitenciários,
eufemisticamente rotulados de "condomínios",
mas na verdade com mais segurança do que a velha
Alcatraz, embora inútil pois às vezes os
próprios agentes dessa "segurança" estão
por trás ou ao lado de sua violação.
Quem pode, dá no pé e vai morar em algum
país no qual não seja necessário
rezar sempre que um filho vai à rua e um celular
para cada um desses filhos não é considerado
equipamento de segurança indispensável.
Quem chega de fora fica assombrado em ver o número
de grades pelas quais tudo é cercado, de edifícios
a praças públicas, como se fosse normal
o cidadão viver por trás de grades, enquanto
o pau come solto lá fora.
Nossas
medidas pessoais de segurança já estão
ficando tão arraigadas que achamos que elas fazem
parte natural da vida. E encontramos sempre gente para
dizer que nossas cidades são iguais a quaisquer
outras grandes cidades do mundo, o que patentemente não é verdade.
Acontece todo tipo de crime em muitas cidades grandes
e civilizadas no exterior, mas há poucas como,
por exemplo, Rio e São Paulo. Não é normal
o sujeito ter de andar com documentos e, para não
tê-los furtados, ser aconselhado pelas autoridades
a portar cópias desses documentos. Não é normal
ver a luz verde acesa para os pedestres e esperar que
os carros parem mesmo, para ousar atravessar a rua.
Não é normal o kit-assalto que muita gente
já usa, o qual inclui desde as mencionadas cópias
de documentos a bolsos nas cuecas, dinheirinho para o
assaltante, relógio para o assaltante, companheiro
para ficar do lado de fora enquanto a gente tremulamente
vai a um caixa eletrônico, dinheiro maior entre
a meia e o sapato e um terço rezado pelas mães,
enquanto os filhos adolescentes vão a uma festinha.
Chega
dessa besteira de dizer que isso também é normal
em Nova York, Paris ou Miami, porque não é.
Tampouco é normal ter medo da polícia e
de parar para a fiscalização, achando que
se trata de uma blitz falsa. Blindar carros de família
também não é normal. Botar janelas à prova
de balas em apartamentos não é normal.
Ter delegacias de polícia invadidas não é normal.
Ler
todo dia sobre alguém que morreu por bala
perdida também não é normal.
Ter
feriados decretados por bandidos não é normal.
Armar guaritas de estilo militar e cancelas à entrada
de ruas públicas não é normal.
Mas
para nós ficou. E vai piorando. Nada impede,
a não ser a organização de uma liderança
suficientemente poderosa, que o Rio de Janeiro, por exemplo,
termine por ser inteiramente dominado por bandidos. Hoje,
por exemplo, segundo me dizem, os policiais evitam usar
suas identificações funcionais, porque,
quando chegar a normalíssima hora do assalto ao ônibus, à agência
bancária ou mesmo à banca de revistas e
os assaltantes descobrirem que um dos presentes é policial,
o fuzilam na hora. E, também segundo me dizem,
há policiais cujos salários os obrigam
a morar em favelas perigosas que não podem deixar
a farda lavada secando do lado de fora, para não
descobrirem que ali mora um tira e o matarem, ou alguém
da família dele.
Para
resolver isso, que cresce como um câncer
em metástase desenfreada, os governos oferecem
palavrório e legislação. Devemos
ter as leis mais avançadas do mundo e vêm
vindo mais. Por exemplo - e chego finalmente ao ponto
mais polêmico -, agora o plano é desarmar
os cidadãos, proibindo terminantemente o porte
de armas, mesmo que exclusivamente dentro de casa.
Não tenho arma e sou visceralmente contra seu
uso, mas não sou maluco. O cidadão que
respeitar a lei não terá mais arma em casa,
ou nem mesmo no sitiozinho, onde relaxar virou privilégio
de quem pode contratar seguranças e ter cachorros
ferozes por tudo quanto é canto. Mas o bandido?
Ah, este estará de agora em diante perdido, porque
o novo dispositivo legal cerceará sua ação
criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá entrar
na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque esse
cidadão não contará com uma arma
para defender-se. Mas o bandido poderá ser facilmente
vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei
para mostrar ao assaltante: "Olhe aí, diz
aqui que é proibido o porte de armas." "Ah,
desculpe", dirá o assaltante, pedindo licença
para retirar-se e saindo sem bater a porta. "Foi
mal, eu não tinha sido informado." E não
duvido nada que, se o cidadão tiver em casa um
revólver, mesmo que não dê um tiro
no assaltante, seja preso e processado inafiançavelmente,
enquanto o assaltante, réu primário, servirá pena
de dois anos em regime semi-aberto. Tudo sob o império
da lei.
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