
Quarta-feira, 16 de novembro de 1983
Para
entendermos os acontecimentos trágicos
dos últimos dias, recomendo vivamente o artigo que segue
Quatro Dedos Sujos e Feios
A
perplexidade se dá bem com macias cadeiras de couro, nas
quais o homem sente afundar-se gostosamente. É que há certa
analogia entre estar atolado em questões perplexitantes,
e em poltronas de molas macias. O homem perplexo, afundado em couros,
fica atolado tanto de corpo como de alma, o que confere à situação
dele essa unidade que nossa natureza pede insistentemente, a todo
propósito.
É
verdade que tal unidade não vai aí sem alguma contradição.
As perplexidades constituem para a mente um atoleiro penoso. Um
purgatório. Por vezes quase um inferno. Pelo contrário,
os couros e as molas proporcionam ao corpo cansado um atoleiro
delicioso, reparador. Mas essa contradição não
fere a unidade. E diminui o tormento do homem, em vez de o acrescer.
Para prová-lo ao leitor, bastaria a este imaginar quão
pior seria a situação de um homem perplexo, sentado
num duro banco de madeira...
Ocorreu-me isto tudo ao recordar que, numa noite destas, chegado
ao termo o jantar, resolvi refletir sobre a situação
nacional, atoleiro no sentido mais preciso e sinistro do termo.
E para isto me afundei instintivamente em uma profunda e macia
poltrona de couro. Comecei então a pensar...
A ronda macabra dos vários problemas pátrios, ideológicos,
sociais e econômicos, começou a dançar em meu
espírito. A fim de ver claro, eu procurava deter a feia
ciranda, de modo a analisar, uma por uma, as várias questões
que a formavam. Mas estas pareciam fugir a toda avaliação
exata, executando cada qual, diante de meus olhos por fim fatigados,
um movimento convulsivo à maneira do "delirium tremens".
Pertinaz, eu insistia. Mas elas, não menos pertinazes do
que eu, aumentavam seu tremor, e de repente retomavam em galope
sua ciranda.
Febre? Pesadelo? O certo é que me senti subitamente em presença
de um personagem muito real, de carne e osso...
E eu, que tinha intenção de comunicar aos leitores
o resultado de minhas lucubrações, fiquei reduzido
a contar-lhes o que este personagem me disse.
O tal homem a-temporal me tratava de você, com uma certa
superioridade que tinha seu tantinho de irônico e de condescendente.
E, pondo em riste o indicador curto e pouco limpo da mão
direita, como para me anunciar uma primeira lição,
sentenciou: "Saiba que eu, o comunismo, fracassei neste sossegado
Brasil. O PC é aqui um anão que dá vergonha.
Por isso, evito de o apresentar sozinho em público. O sindicalismo
não me adiantou de nada. Possuo muitos de seus chefes, mas
escorre-me das mãos o domínio sobre suas bases bonacheironas
("pacifistas", diria você). Entrei pelas Cúrias,
pelas casas paroquiais, seminários e conventos. Que belas
conquistas eu fiz. Mas ainda aí prosperei nas cúpulas,
porém a maior parte da miuçalha carola me vai escapando.
Noto, Plinio, sua cara alegre ante minha envergonhada confidência.
Você me reputa derrotado. Bobão! Mostrar-lhe-ei que
tenho outros modos de progredir.
— Você duvida? — Sim, eu duvidava.
Então ele levantou teatralmente, ao lado do dedo indicador,
o dedo médio, um pouco mais longo e não menos rejeitável.
E entrou a dar sua segunda lição.
"
Começarei por um sofisma. Farei o que você não
imagina: a apologia do crime. Sim, direi por mil lábios,
através de mil penas, milhões de vídeos e
de microfones, que a onda de criminalidade, a qual tanto assusta
os repugnantes burgueses, raramente nasce da maldade dos homens.
Nas tribos indígenas, os crimes são mais raros do
que entre os civilizados. O que quer dizer que o crime nasce entre
nós das convulsões sociais originadas da fome. Elimine-se
a fome, desaparece o crime. Como, aliás, também a
prostituição.
"
Quem você chama de criminoso é uma vítima.
Sabe quem é o criminoso verdadeiro? É o proprietário.
Sobretudo o grande proprietário. Principalmente este é que
rouba o pobre.
"
Enquanto um ladrão de penitenciária rouba um homem,
o proprietário rouba um povo inteiro. Seu crime social é de
uma maldade sem nome!"
O delírio leva a muita coisa. Pensei em expulsar o jactancioso
idiota. Mas o comodismo me manteve atolado em minha poltrona. Furibundo
e inerte, deixei-o continuar.
Ele levantou o dedo anular, feio irmão dos dois que já estavam
erguidos. E prosseguiu.
"
Há mais uma "seu" Plinio. À vista de tudo
quanto eu disse, um governo consciente de suas obrigações
tem por dever desmantelar a repressão e deixar avançar
a criminalidade. Pois esta não é senão a revolução
social em marcha. Todo assassino, todo ladrão, todo estuprador
não é senão um arauto do furor popular. E
por isto farei constar ao mundo inteiro que a explosão criminal
no Brasil está sendo caluniada por reacionários ignóbeis.
A criminalidade é a expressão deste furor justamente
vindicativo das massas, que os sindicatos e a esquerda católica
não souberam galvanizar."
Suspendendo o minguinho, miniatura fiel dos três dedos já em
riste, meu homem riu. "Farei entrar armas no Brasil. Quando
os burgueses apavorados estiverem bem persuadidos de que não
há saída para mais nada, suscitarei dentre os que
você chama "criminosos", um ou alguns líderes,
que saberei camuflar de carismáticos. E farei algum bispo
anunciar que, para evitar mal maior, é preciso que os burgueses
se resignem a tratar com aqueles que têm um grau de banditismo
menor.
"
Vejo a sua careta. Você está achando a burguesia preparada
para cometer mais esse erro. Tem razão. Assim se constituirá um
governo à Kerensky, bem de esquerda. O dia seguinte será do
Lênin que eu escolher."
Levantei-me para agarrar o homem. Quando fiquei de pé, acabei
automaticamente de acordar. Ou cessou a febre...
Escrevi logo quanto "vira" e "ouvira", pois
só até poucos minutos depois da febre ou do sono,
tais impressões se podem conservar com alguma vitalidade.
Leitor, desejo que elas não lhe dêem febre. Se é que,
antes de terminar a leitura, elas não lhe darão sono.
Este não será, em todo caso, um tranqüilo sono
de primavera. Mas estará em consonância com essa metereologia
caótica dos dias aguados e feios com que vai começando
novembro.
P.S. — A Polícia paulista parece hoje em reviravolta. Que
diria a isto o hominho dos quatro dedos sujos? Em São Paulo,
e pelo Brasil afora, que rumo tomará o buscapé da
subversão? Parar, não parará...
PLINIO
CORRÊA DE OLIVEIRA é professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, ex-deputado constituinte
(1934) e pensador católico tradicionalista.
Transcrito da "Folha de S. Paulo" de quarta-feira, 16/11/1983.
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