Da
legítima defesa e seu exercício
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por Rafael
Vitola Brodbeck em 28 de dezembro de 2004
Resumo:
O Estatuto do Desarmamento, além de desrespeitar
o direito de propriedade, lança as bases de uma
cultura da covardia e do capitulacionismo.
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O direito à vida, amparado pela lei natural e
pela grande maioria das legislações positivas, é absoluto,
por ser a origem de todos os outros. Não há que
se falar em direitos dos mortos - e mesmo aqueles a estes
relativos tutelam, em verdade, o direito à memória
e à honra mantidos pelos descendentes do extinto.
Protegido, vimos, pela norma positivada pelo Estado,
nem por isso deixa de vincular-se juridicamente à natureza,
pelo que o Direito Natural é seu primeiro garante. Forma peculiar
de proteção à vida é a
legítima defesa de si e de outrem. Aparentemente
constitui-se em uma exceção ao mandamento
de não matar, ao qual é cominado uma sanção
criminal. Todavia, por ser o direito à vida absoluto
como dissemos, não comporta o mesmo exceções
de espécie alguma. A legítima defesa, na
realidade, é uma proteção à vida
humana, um exercício de fato do direito à existência,
e não uma válvula de escapa que permite
que este seja desrespeitado sob determinadas condições.
Não quer o legítimo defensor a morte do
agressor injusto: aceita-a, tolera-a, tendo em vista
as circunstâncias nas quais se encontra, eis que
a única possibilidade de efetiva defesa da própria
vida consubstancia-se, no caso, no ato de ceifar a do
violador da ordem jurídica e social. Do exposto,
temos a natureza do conceito de legítima defesa.
Ao que rompe o ordenamento proibitivo do atentado à vida,
reserva-se, quando esta é a única solução
imediatamente eficaz, a justa reação conservacionista
do atacado, convertido em defensor de si ou de terceiros.
Não é este o agente da morte, senão
mero instrumento da gerada pelo próprio agressor,
que aceita, mesmo tacitamente, a conseqüência
de seu ato desordenadamente violento e intrinsecamente
injusto.
Não é a legítima defesa mero instituto
de Direito Positivo, i.e., não é simples
criação do Estado, que, se não o
houvesse feito, criminalizaria quem tem direito à autodefesa
- e por vezes dever até! Desdobramento prático
do direito pessoal à vida, a legítima defesa
pertence ao Direito Natural, conquanto a preservação
vital é inata ao ser humano. Explica-o, filosófica
e juridicamente, o grande gênio do Medievo e da
Civilização Ocidental, Santo Tomás
de Aquino, glória dos dominicanos, dos pensadores
da própria Igreja, que, no dizer dos Papas, fez
dela a sua doutrina. É o ensino do Aquinate: "A
ação de defender-se pode acarretar um duplo
efeito: um é a conservação da própria
vida, o outro é a morte do agressor (...). Só se
quer o primeiro: o outro, não."[i]
Da mesma maneira,
o Catecismo da Igreja Católica
sanciona o postulado jusnaturalista, ao declarar que "o
amor a si mesmo permanece um princípio fundamental
da moralidade. Portanto, é legítimo fazer
respeitar seu próprio direito à vida. Quem
defende sua vida não é culpável
de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o
agressor (...)."[ii]
Muitos juristas
discutiram, por anos, a partir do liberalismo, sobre
a natureza do instituto jurídico da legítima
defesa. Versaram alguns, baseados em um juspositivismo
extremo, que, sendo o Estado o detentor do direito de
defesa, delega-o ao indivíduo quando não
puder exerce-lo. Tal conceito é equivocado, pois
ignora completamente a realidade das coisas e o próprio
fato, indiscutível, de que o primeiro a desejar,
exercer e proteger um direito é o próprio
possuidor desse direito. Assim, o direito à vida
não é uma concessão do Estado ao
indivíduo, mas algo inerente à sua natureza.
Também o são os direitos anexos fundamentais,
destinados à sua efetivação e conservação.
Existente o homem, há o direito à vida,
a qual deve ser defendida primeiramente por ele mesmo,
subsidiariamente por outros e pelo Estado. Disso já falavam
os escolásticos.
Outras teorias,
menos absurdas do que a dos que declaram ser a legítima defesa uma delegação
do Estado - que teria o primado do exercício do
direito à vida de seus súditos e sua conservação,
o que vimos ser errôneo -, pecam, todavia, por
inexatidão de termos e pressupostos. Para alguns,
na legítima defesa, há colisão de
bens jurídicos, o que faz prevalecer o do agredido,
por ser mais valioso; para outros, como Carrara, há uma
delegação inversa a já comentada,
desta feita do indivíduo ao Estado, de seu direito
de defesa - o que é uma inverdade também,
pois o que se delega é o exercício de alguns
atos de defesa e, mesmo assim, de modo subsidiário,
sem renúncia ao exercício direto -, o qual é retomado
quando o Estado não puder defendê-lo; enfim,
os teóricos das escolas subjetivistas ligam, como
Puffendorf, o instituto ao estado de espírito
da pessoa, a qual ficaria perturbada pela agressão
ou coagida por ela, ou, então, aos motivos determinantes
da repulsa do agredido.
"Todas essas opiniões", é o
magistério do culto Magalhães Noronha,
destacado penalista de nossa Terra de Santa Cruz, referindo-se às
errôneas teses citadas sobre a natureza da autodefesa, "não
procedem, como é fácil verificar. Os subjetivistas
transportam a legítima defesa para o terreno da
culpabilidade, o que é insustentável, enquanto
os objetivistas ou se fundam na idéia contratualista,
ou desconhecem a essência do instituto, onde não
há conflito de interesse - como no estado de necessidade
- mas ofensa a um interesse juridicamente tutelado."[iii]
De fato não há conflito entre o real interesse
de defesa e um inexistente interesse de agressão.
Logo a seguir,
o festejado e erudito penalista conclui que a opinião predominante entre os doutos, hodiernamente, é a
de que a legítima defesa é causa excludente
da antijuridicidade - teoria felizmente acolhida por
nossa lei penal material e indiscutivelmente apregoada
pelos juristas nacionais -, é tutela do direito
próprio e de outrem. Excluída a ilicitude,
tem-se que a legítima defesa é um verdadeiro
direito, conseqüência óbvia e autêntico
corolário do direito natural, ainda que positivado, à vida.
No século XIII, já tinha afirmado o mesmo
o mestre Santo Tomás. A teimosia dos liberais,
com sua ânsia em reestruturar o mundo ignorando
as lições da moral clássica, é que
criou as teorias precedentemente aludidas. Ruindo as
mesmas, voltamos ao pensamento tomista, e torna-se no
mínimo honesto reconhecer, nessa matéria
ao menos, a subordinação das idéias à realidade,
varrendo qualquer espécie de ideologia. É,
aliás, a compreensão do Doutor Angélico,
que, antes da de outrem, estamos ordinariamente obrigados
a defender nossa própria vida diante de um ataque
movido por um injusto agressor, no que a legítima
defesa é um direito, e, n'alguns casos, também
um dever, e dever grave, para os que são responsáveis
pela vida de outros (pai de família, superior,
agente do Estado com atribuição legal para
tal, militar etc).
O Direito
Positivo brasileiro, na esteira do Direito Natural,
assegura a ação de quem, em legítima
defesa, repele agressão injusta mesmo com a morte
do agressor. Sendo a morte inevitável, que seja
a do violador da ordem consubstanciada no preceito legal.
E conceitua nossa lei o instituto, valendo-se do estabelecimento
de certas condições que o caracterizam,
as quais, longe de serem criações do puro
arbítrio do legislador ou herança de codificações
pregressas somente, inspiram-se na moral cristã clássica,
notadamente no pensamento do Aquinate (outra vez), e
presente até no Direito Canônico positivo,
que aceita a excludente com a definição
tradicional. Isto posto, reza o Código Penal pátrio:
"Art. 25 - Entende-se em legítima defesa
quem, usando moderadamente dos meios necessários,
repele injusta agressão, atual ou iminente, a
direito seu ou de outrem."
Eis aí os elementos caracterizadores da legítima
defesa, sem os quais não há que se falar
nela: agressão injusta atual ou iminente, moderação
no exercício do direito, emprego dos meios necessários,
defesa de direito próprio ou alheio.
Não é outro, repitamos, o ensino de Santo
Tomás, explicitando e explicando a natureza: "Se
alguém, para se defender, usar de violência
mais do que o necessário, seu ato será ilícito.
Mas, se a violência for repelida com medida, será lícita."[iv]
O nefasto
Estatuto do Desarmamento, tão comentado,
além de desrespeitar o direito de propriedade,
constitucionalmente tutelado, e de lançar as bases
de uma cultura da covardia e do capitulacionismo, arremete
pesados e inflamados dardos contra a legítima
defesa, tal como a comentamos neste ensaio - eis que
proibindo o porte ordinário de armas, retira a
possibilidade do uso "dos meios necessários",
criminalizando o legítimo defensor -, num claro
desrespeito à vida: natural, constitucional e
penalmente protegido.
Se a legítima defesa não é direito
dado pelo Estado, como pudemos perceber ao longo deste
texto, também não cabe a ele retirá-lo
de seus súditos, extrapolando os limites de seu
poder e investindo, à moda totalitária[v],
contra o princípio da subsidiariedade.
[i] S. Th., II-II, q.64, a.7
[ii] Cat., 2264
[iii] NORONHA,
Magalhães. "Direito Penal",
São Paulo: Saraiva, 2000, 35ª edição
atualizada, vol. 1, p. 195
[iv] Santo
Tomás de Aquino. Op. cit.
[v] Mesmo
com democracia e manifestação
da vontade unânime do povo, pode haver totalitarismo.
Este não é necessariamente sinônimo
de ausência de regime democrático, e sim
a prática reiterada de atribuir-se o Estado poderes
que não tem. Não nos esqueçamos
que o povo alemão apoiou Hitler, e boa parte dos
italianos de então pensava como o Duce. |