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Resultado do referendo:
inteligência
Dílio Procópio
Drummond de Alvarenga
professor aposentado de Direito Penal na Universidade Federal de Juiz de Fora
(MG)
1.Acabam
de ser anunciados os números em que
se manifesta a estrondosa vitória do não
sobre o sim quanto à ansiada proibição
do comércio de arma de fogo e munição
no território nacional. Após a batalha
desigual travada entre as frentes representativas das
duas facções, sagrou-se vencedora a idéia
defendida pelos mais humildes, que, a despeito disso,
tiveram a coragem e a audácia de se oporem aos
mais aquinhoados que se escudavam nos poderosos meios
de comunicação, que não pouparam
recursos pessoais e materiais na perseguição
do próprio intento, agora amplamente rechaçado. 2.Como
se sabe, o referendo, como tal realizado em 23 de outubro
de 2005, é uma das formas de exercício
da soberania popular, prescrita para os casos de suma
importância nacional, a fim de que possa entrar
em vigor uma decisão já tomada pelo legislativo,
no caso a disposta no art. 35 da Lei n.º 10.826/03.
3.Apesar
de o resultado da consulta haver ocorrido de forma
a afastar qualquer dúvida quanto à real
e insofismável vontade do povo brasileiro, multiplicam-se,
entre os perdedores, aqueles recalcitrantes que procuram
desmerecer a conquista alcançada pelos seus opositores,
ao sustentarem, até, que o referendo em nada alterou
a situação vigente, o que demonstra a inútil
forma - obtusa, tacanha e teimosa, de procurar minimizar
a importância e o alcance do ato cívico
levado a efeito. Será que somente o resultado
contrário teria relevante eficácia? Se
assim fosse, o referendo teria sido totalmente despiciendo,
configurando uma verdadeira farsa, teatralizada só para
conferir ares de legitimidade à prévia
postura legislativa. E quanto aos imensos recursos despendidos
por este País? Teriam, tão somente, corrido
o inútil risco de financiar o nada?
4.Estarrecido,
assisti a algumas entrevistas de certos iluminados
quando afirmaram que o resultado do referendo
foi, afinal, inteiramente inócuo, já que,
exceto o impedimento da vigência do art. 35 do
Estatuto do Desarmamento, em nada teria alterado a legislação
em vigor, que é por demais rigorosa, a ponto de
quase impossibilitar a aquisição da arma
pelo particular. Em outras palavras: qualquer que tivesse
sido a resposta dada pelo povo, a arma de fogo e a munição
estariam longe do alcance do homem comum.
5.Ora,
ninguém, provido do mínimo senso
ordinário, nem principalmente o jurista, que seja
dotado do requerido senso jurídico, acataria tão
estreita interpretação, digna dos rábulas
e leguleios, que não merecem ser vistos senão
como meros ledores de leis.
6.Algumas
reflexões, então, devem ser
feitas com o propósito de obstar tão apressada
interpretação. A primeira delas é intuitiva
e surge do exame das primeiras linhas do estudo da Hermenêutica
Jurídica: a interpretação que leva
o intérprete ao absurdo deve ser afastada de plano.
Absurda não é a lei, mas a interpretação.
Além do mais, cumpre que se perceba que o referendo,
sendo um ato de exercício da soberania popular, é tão
grandioso que o torna incompatível com a imprestabilidade
de um zero à esquerda como resultado.
7.Outra
reflexão surge do exame do artigo de
lei não referendado, ou seja do art. 35 do Estatuto,
que visava a proibir o comércio de arma de fogo
e munição em todo território nacional.
O teor do dispositivo, em realidade, diante da falta
do referendo, transformou a proibição em
permissão, já que a negação
da negação transmuda-se necessariamente
em afirmação. Assim, o referendo popular,
proibindo que se proibisse, passou, a contrario sensu,
a permitir o comércio de arma de fogo e munição
em todo o território nacional, até que
tal seja revogado por outro referendo ou por futura norma
de hierarquia superior.
8.Mais
uma reflexão que não pode ser
descurada é a que diz respeito à teleologia
da recusa do referendo à proibição
do comércio legal de arma de fogo e munição.
Qual teria sido, destarte, o propósito do povo
ao não referendar dita proibição?
Proteger a indústria brasileira de armas e munições?
Não. Isso em nenhum momento foi lembrado por ocasião
da consulta popular nem o próprio Estatuto do
Desarmamento cogitou da proibição do fabrico
desses produtos. Proteger as empresas que se ocupam do
comércio de armas de fogo e munições?
Também não. O intuito seria pequeno demais
para justificar a objeção ao referendo.
9.O
verdadeiro propósito, a real pretensão
exteriorizada pela imensa parcela dos eleitores brasileiros
não se liga à defesa do comércio
em si, ou seja, da venda, mas da proteção
da compra, ou seja, da aquisição, por parte
do cidadão, da arma de fogo e respectiva munição.
Em última análise, a teleologia do não
referendo circunscreve-se ao desiderato de autorizar àquele
que comprou, que adquiriu a arma e a munição,
possa, a qualquer tempo, tê-las consigo, em sua
residência ou em seu local de trabalho, para os
fins de defesa pessoal e patrimonial. Afastadas, evidentemente,
conseqüências outras, principalmente quanto
ao porte desautorizado, fora de casa, o que, por sinal,
não foi defendido por ninguém, seria incompreensível
e ilógico que alguém pudesse adquirir arma
e munição sem que lhe fosse permitido conservá-las
adequadamente em seu poder.
Mas
as reflexões e conclusões não
param por aí.
10.Contrariamente àqueles que, sem pensar, sustentam
que o resultado do referendo teria sido inócuo,
diante das incontáveis dificuldades e pressupostos
previamente impostos pela lei para a aquisição
de arma e munição, há de ser relembrada
a importância e grandiosidade do ato de exercício
da soberania popular. Segundo sustento, o resultado do
referendo apresenta duas conseqüências importantíssimas,
uma explícita ou expressa e outra implícita
ou tácita, a saber:
a)
negação de vigência ao art.
35 do Estatuto do Desarmamento (conseqüência
explícita ou expressa);
b)
revogação de todos os dispositivos
legais que sejam incompatíveis com o resultado
do referendo, isto é, daqueles que impossibilitem
ou dificultem sobremaneira a aquisição
e posse de arma e munição pelos cidadãos
(conseqüência implícita ou tácita).
11.Os
requisitos para a aquisição de
arma de fogo de uso permitido encontram-se no art. 4° da
Lei n.º 10.826/03 e no art. 12 do respectivo regulamento,
Decreto n.º 5.123/04.
12.
Alguns desses requisitos deveriam concernir não à aquisição,
mas ao porte da arma de fogo. O interessado precisa comprovar,
por exemplo, que não esteja respondendo a inquérito
policial ou a processo criminal, mediante a entrega de
certidões fornecidas pela Justiça Federal,
Estadual, Militar e Eleitoral. Ora, alguém que,
por acaso, esteja respondendo a inquérito policial
ou a processo criminal, fica inibido de poder exercitar
o seu direito de defesa, o de sua família e o
de seu patrimônio?
13.
Outro requisito, também mais corretamente
apropriado à obtenção do porte, é o
relativo à exigência de demonstração,
por parte do adquirente, de possuir aptidão técnica
e psicológica para o manuseio da arma. Aqui, o
legislador incorreu no esquecimento, por sinal muito
comum entre os jejunos, qual seja, no fato de que, geralmente,
numa casa, não reside uma só pessoa – exatamente
o candidato a ser proprietário da arma. Nela,
poderá habitar a mulher, acompanhada ou não
dos pais, filhos, genros, noras e netos, todos isentos
de comprovação da idoneidade, aptidão
psicológica e capacidade técnica de manuseio.
Qual a solução para o impasse? Será que
os demais moradores da casa estarão impedidos
da co-habitação ou ser-lhes-á defeso
o uso da arma, mesmo diante da ocorrência de agressão,
atual ou iminente, a direito seu ou de outrem?
14.Finalmente,
cabe-me referir ao mais "importante" requisito
para a aquisição da arma de fogo. Trata-se
da imprescindível declaração de
efetiva necessidade da arma. Essa declaração,
que será renovada a cada três anos, deve
explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras
do pedido, que poderá ser indeferido pela autoridade
competente. Ora, penso que tal pressuposto, à luz
do resultado do referendo, deixou de existir porquanto,
no exercício de sua soberana vontade, o povo veio
a afirmar, de maneira incontestável, que a arma
de fogo e munição são realmente
imperiosas, na residência ou no local de trabalho,
para o exercício do legítimo direito de
defesa das pessoas.
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