http://jbonline.terra.com.br

26/MAI/2005

Desarmamento: exagero e desinformação

Almir Pazzianotto Pinto *
Advogado

Os brasileiros jamais foram guerreiros e fanáticos por qualquer modalidade de arma. Não temos heróis no estilo do general Patton, que não dispensava o Colt.45 no coldre, ou como John Wayne, que simbolizou, no cinema, o cowboy americano paladino do oeste selvagem.

As nossas paixões são outras, como o carnaval, futebol, churrasco, feijoada. Nem mesmo as Forças Armadas podem se gabar de deter moderna tecnologia em termos de defesa ou ataque. Até há poucos anos a arma padrão da infantaria era o obsoleto fuzil Mauser, modelo 1908, que aprendi a desmontar, montar e disparar, no Tiro de Guerra de Capivari, que me conferiu certificado de integrante de 2ª categoria da reserva do Exército.

A maior parte da população não está ligada à arma de fogo. Basta verificar o número de lojas que se dedicam a esse tipo específico de comércio. Muitos, porém, conservam, fechado a chave, revólver de 5 ou 6 tiros, ou espingarda cartucheira, como lembrança da família e instrumento de legítima defesa. Certo número reduzido de pessoas se dedica a colecionar armas raras, e pequena quantidade aprecia a caça, severamente reprimida pela legislação ambiental. Existem, ainda, esportistas dedicados ao tiro olímpico, embora neste terreno não tenhamos a menor condição de competir com a Alemanha, Suécia, Finlândia, Suíça, Estados Unidos, Itália e outros países desenvolvidos. Em disputas internacionais a participação brasileira é quase simbólica, pois o tiro esportivo é esporte pouco difundido, e se faz presente graças à abnegação de um punhado de desportistas, inspirados no exemplo do tenente Guilherme Paraense que, com arma emprestada, levantou a medalha de ouro na Olimpíada de Antuérpia, em 1920. Foi a primeira medalha de ouro do Brasil na história das Olimpíadas.

A campanha, que está circunscrita ao desarmamento das pessoas de bem, como reconhece o Ministro da Justiça, peca pelo exagero. S. Exa., criminalista de renome internacional, está à procura de solução radical que, se for adotada, transformará milhares de pessoas em criminosos, unicamente porque não estão dispostos a abrir mão do revólver que guardam para eventual defesa da família, em caso de invasão da residência. O comércio ilegal de armas de fogo é a causa do problema, que deve ser debitada ao ineficiente combate ao contrabando e ao crime organizado.

As polícias - refiro-me a todas as polícias estaduais - nunca dispõem de efetivos suficientes para garantir a plena segurança da população. Ademais, arma não é unicamente a arma de fogo. De acordo com o dicionário, é ''qualquer instrumento de ataque ou defesa''. Facas, navalhas, podões, foices, machados, garrafas, pedras, porretes, podem ser tão letais quanto uma pistola ou revólver. Um soco pode ser fatal. Presenciei, na Av. 23 de Maio, determinado cidadão descer do automóvel armado com bastão de beisebol, para agredir outro motorista, por algum problema de trânsito. Flamínio Fávero, na conhecida obra Medicina Legal, mostra vítimas de lesões graves e mortes, cometidos a dentadas, navalhadas, cacetadas, água fervente.

Fosse possível desarmar a população toda, e não apenas aqueles que vivem na legalidade, não ocorreriam rebeliões e assassinatos nos presídios e na Febem, com a utilização de chuços e estiletes, produzidos não se sabe como, nem a partir do quê. A aquisição de armas de fogo, para fins de defesa pessoal e patrimonial, deve ser alvo de rigoroso controle, como sucede em qualquer país civilizado. É apropriado, também, que vigilantes, colecionadores, atiradores e caçadores se submetam a legislações específicas e atualizadas.

O que não está certo é obrigar-se a população, em grande parte desinformada, a referendo para que responda ''sim'' ou ''não'' a pergunta revestida de tanta complexidade. Após mais de ano de vigência, muitos artigos do Estatuto do Desarmamento aguardam regulamentação. Não se providenciou, também, cadastro único dos estoques policiais e relação oficial de produtores, atacadistas, varejistas, exportadores e importadores autorizados. Tampouco se acham inventariados os registros e autorizações de porte, que permitam às secretarias estaduais de segurança pública entrarem em sintonia com a Polícia Federal. A lei exige, para aquisição de arma de fogo, que o interessado prove ser detentor de capacidade técnica e que não ofereça risco à sociedade. Não se conhecem, porém, psicólogos e instrutores formalmente habilitados para satisfação dessas duas exigências. Dependem de melhor regulamentação as guardas municipais e as empresas de segurança, pessoal ou patrimonial, com direito ao uso de arma em serviço.

O Estatuto do Desarmamento criou o ''caçador de subsistência'', autorizado a possuir espingarda de um ou dos canos, desde que demonstre tê-la para alimentação da família. Trata-se de abstrusa permissão para abate indiscriminado de animais silvestre, por parte de quem se revela inabilitado para criar animais domésticos e ser pequeno agricultor.

Quando o professor Flamínio Fávero publicou, em 1938, a primeira edição de Medicina Legal, apontou como causas morais de homicídios, à luz das estatísticas da época, a intoxicação alcoólica em primeiro lugar, em segundo ''as desordens do amor, tendo, neste particular, papel relevante, como fator sugestivo, a imprensa'' e, em terceiro, ''as questões surgidas no jogo''. Hoje, se fosse vivo, o ilustre catedrático daria a primeira posição ao tráfico e consumo de entorpecentes, responsáveis diretos pela transformação do crime em empresa, a que se dedicam cartéis internacionais.

Gastar centenas de milhões de reais com referendo que nada de objetivo trará para a redução do comércio ilegal de armas e do crime organizado, é um erro. Reserve-se a consulta para depois da implantação do Estatuto do Desarmamento, quando forem conhecidos os seus resultados.

*Almir Pazzianotto Pinto foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.