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EDITORIAIS
- Domingo, 16 de outubro de 2005
O
referendo sobre as armas
A
maior parte das armas em poder dos bandidos foi tomada
de pessoas
de bem que as adquiriram legalmente. Logo,
para privar os bandidos dessa fonte de abastecimento
de revólveres e pistolas, desarme-se a população
ordeira - afirma a propaganda a favor da proibição
do comércio de armas de fogo. Certo? Errado,
muito errado! Esse é um sofisma grosseiro,
para justificar uma falsa solução,
que agride a lógica e fornece a desculpa para
as autoridades incapazes de conter o surto de banditismo
que há anos castiga o País. Vejamos:
se os delinqüentes se armam, roubando pessoas
de bem, o que os agentes do Estado têm de fazer é impedir
que os bandidos ajam à vontade, e não
desarmar as pessoas honestas.
Mas o que está em jogo no referendo do dia 23
não é uma simples questão de lógica.
Vai-se decidir, por maioria simples, se os cidadãos
abdicam de um direito fundamental da pessoa humana:
o de legítima defesa, sua e de sua família.
Sendo esse o verdadeiro objeto do referendo, causa
espécie que nenhum dos defensores da teoria
das cláusulas pétreas da Constituição
tenha ido à Justiça para impedir a realização
da consulta popular. Afinal, o seu resultado pode ser
a revogação de um direito inalienável.
O
fato é que a proibição do comércio
de armas e munições, como se pretende,
não constitui apenas limitação
ou regulamentação de um direito. Se for
aprovada, a liberdade será duplamente esbulhada:
estará suprimido um direito - o que é um
retrocesso cívico - e consagrada mais uma intromissão
do Estado na esfera da escolha individual - o que caracteriza
a segunda agressão à liberdade. O Estado
pode decidir, por meio de leis como o Estatuto do Desarmamento,
que para adquirir uma arma o cidadão preencha
rigorosos requisitos. Pode limitar a casos especialíssimos
o porte dessas armas. Mas serão violados os
direitos constitucionais se impedir que o cidadão
se proteja e à sua família, vedando-lhe
o acesso aos meios de defesa. E, se isso acontecer,
ficam derrogados ainda os direitos à incolumidade, à dignidade
e ao patrimônio, além de tornar-se tábula
rasa o direito à legitima defesa, que as leis
asseguram.
Essas
mesmas leis, quando determinam que só ao
Estado cabe punir os criminosos, não estatuem
que o cidadão deva ficar inerme e indefeso diante
do assaltante, do assassino ou do estuprador. Como
afirma o jurista Adilson Abreu Dallari, 'defender-se
ou não, ter ou não ter uma arma, reagir
ou não a uma agressão é uma opção
pessoal'. E essa opção deixará de
existir se for proibido o acesso às armas necessárias à defesa
pessoal.
Convocou-se
um referendo cujo objetivo evidente é desarmar
as vítimas e armar o governo com um argumento
para disfarçar o fracasso de sua política
de segurança. Os criminosos, esses, como reconhece
o ministro da Justiça, continuarão armados.
Esse é o corolário da estapafúrdia
idéia, 'politicamente correta', que considera
a vítima culpada pela agressão que sofre
e o bandido é a vítima de tudo e de todos,
inclusive e principalmente da sociedade. Segundo o
bom-mocismo vigente, o agressor não comete um
crime; pratica uma violência - e a vítima
que reage não exerce seu direito de legítima
defesa; também pratica uma violência.
Bandidos e pessoas de bem foram igualados. É assim
que se apresenta o referendo: uma manifestação
da sociedade contra a 'violência'.
No
entanto essa percepção é inerentemente
violenta e autoritária. Primeiro, porque desarmando
a população ordeira os bandidos ficam
automaticamente incentivados a exercer o seu ofício
nefando. Terão a certeza de que não correrão
qualquer risco. Depois, porque erige-se em direito
a intromissão do Estado não só na
esfera das decisões individuais, mas na escolha
do que é bom e do que é pernicioso para
a sociedade.
Por
fim, mas não menos importante, esse referendo
mascara uma das mais gritantes falhas do governo. A
população brasileira, ao contrário
do que se tenta fazer crer, não está armada
até os dentes. Não mais de 1,4% dos brasileiros
tem uma arma em casa. Na Suíça, onde
as estatísticas da criminalidade violenta são
irrelevantes, um terço dos habitantes tem pelo
menos uma arma de fogo. O problema é que, aqui,
a polícia e o sistema judiciário são
ineficientes.
Se
há crimes em excesso, se a população
se sente insegura, isso se deve a governos como o atual,
que não hesita em gastar R$ 270 milhões
com o plebiscito, mas não aloca mais do que
R$ 170 milhões para as despesas com segurança
pública. É esse o verdadeiro problema.