O erro de Serra
por José Nivaldo Cordeiro em 23 de setembro de 2005
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Resumo: O prefeito José Serra está completamente errado. A polícia, regra geral, chega depois dos fatos acontecidos e nada tem a fazer.

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Em artigo publicado na Folha de São Paulo de hoje (“Eu digo sim ao sim”) o prefeito José Serra faz apaixonada defesa da proibição do comércio de armas de fogo e munições, objeto de referendo no próximo mês de outubro. Como todos os defensores dessa tese absurda, que atenta contra a liberdade, fundamenta sua posição em pura demagogia, escapando às questões centrais, quais sejam, (1) o direito de autodefesa do cidadão é um requisito de sua cidadania plena que nem deveria ser objeto de discussão; (2) o desarme da população ordeira, onde ocorreu, foi sempre o passo preliminar para a chegada do totalitarismo; e (3) a obviedade de que os cidadãos que atuam à margem da lei já obtêm seu armamento de fontes proibidas, que continuarão operantes qualquer que seja o resultado do plebiscito.

Há, portanto, um aspecto individual e outro social, político por assim dizer, da questão envolvendo o desarmamento civil. Cassar-se-á, se aprovado o “sim”, um direito que sempre vigorou em todos os tempos e lugares. Na verdade, esse “direito proibido” será exercido de qualquer maneira, mas uma lei injusta assim aprovada terá o desastroso efeito de lançar parte considerável dos bons cidadão na clandestinidade, fora do abrigo legal. Será o terror jurídico daqueles que têm a responsabilidade de ser a primeira linha de defesa de seus entes queridos.

Posto isso, quero aqui pontuar passagens importantes do artigo do prefeito. Começa com um truísmo do qual ninguém poderia discordar: “Uma arma não é uma causa suficiente para um assassinato, mas, com freqüência, é uma causa necessária”. De fato, desde Caim que qualquer coisa pode servir de ferramenta para matar, até mesmo e sobretudo as próprias mãos. As artes marciais, desenvolvidas em todas as culturas, provam isso. Lutar e ser capaz de defender-se e à própria família foi sempre o desafio encontrado pelos homens em todos os tempos. O corolário lógico é que a arma de fogo, em si, é inócua, não impedindo a ação homicida, desde que o agente a deseje.

Serra, todavia, não pensa assim. Foge do corolário lógico para enveredar nos caminhos tortuosos dos raciocínios turvos: “Na esfera pública, nossas escolhas têm de ser instruídas pela ciência, pela objetividade, pelo que nos indica a experiência empírica, que pode, então, ser transformada num conceito e, por conseqüência, gerar uma norma”. Deveria acrescentar: pela tradição, pelo bom senso, pela obviedade dos fatos dados à observação direta imediata.

“Em 2004, caiu 8,2% o número de pessoas mortas por arma de fogo no Brasil. Desde o dia 15 de julho de 2004, mais de 440 mil foram destruídas. Como negar que esse bom augúrio, o primeiro em 13 anos, coincide com a campanha em favor do desarmamento?” Poderíamos concluir qualquer coisa com o dado. Mas o prefeito prefere a ligeireza de uma explicação artificial: “Levantamentos do Centro de Estudos Brasileiros de Oxford e da Unesco, em parceria com os ministérios da Justiça e da Saúde, indicam que a diminuição de homicídios por essa modalidade se deve, em boa parte, à redução do número de armas em circulação. Se lhes digo apenas "votem sim", faço-me conselheiro atrevido, ainda que bem intencionado. Se opto pelas evidências, faço-me parceiro de uma escolha que, acredito, realiza um bem coletivo”.

O prefeito simplesmente ignora que as pessoas matam por vontade e podem ter simplesmente mudado de opinião. A ferramenta de morte é um mero detalhe, o que vale é a vontade do indivíduo. Estatísticas assim apresentadas mais encobrem as causas do que as revelam, Serra bem sabe disso. Eu perguntaria quantas dessas pessoas assassinadas estavam aptas a defender-se, isto é, quantas delas teriam uma arma de fogo ao alcance da mão. Eu lhe digo, caro leitor, quase nenhuma, pois desde muito tempo o Estado brasileiro tem restringido esse direito fundamental. Em geral são mortos os cidadãos mais pobres, habitantes dos bairros mais perigosos. Comprar uma arma legalmente é proibitivo em face seja da incidência dos abusivos impostos, seja por causa dos altos custos de registro e legalização da mesma. Só a elite econômica poderia ter acesso a esse bem.

A periferia das grandes cidades é um matadouro diários de bons cidadãos, inermes, à mercê dos facínoras armados e da incapacidade das forças policiais de fazerem um trabalho preventivo melhor.

Serra continua. “Segundo o Departamento de Homicídios da Polícia de São Paulo, na maioria dos casos em que há uma ocorrência com arma de fogo, agressor e vítima se conhecem, não se vinculam a nenhuma atividade criminosa, e a motivação do ato é quase sempre fútil”. Se assim é, a proibição será plenamente inócua, pois facas de cozinha são instrumentos tão eficientes quanto, assim como todo tipo de ferramentas domésticas ou de trabalho. É um argumento sofístico insustentável.

“Nada menos do que 34 mil pessoas, em todo o país, foram vítimas fatais de arma de fogo em 2004. Elas são responsáveis por mais de 70% de todos os homicídios. Uma comparação, por mais óbvia que seja, há de nos estarrecer: desde o início da Guerra do Iraque, em março de 2003, morreram pouco mais de 25 mil pessoas. Mata-se a bala, por ano, no Brasil, mais do que em um país conflagrado em dois anos e meio. Entendo que intervir nessa realidade é um dever do Estado brasileiro; mais do que isso, é um imperativo”. Outra falácia óbvia, de comparar alhos com bugalhos. Não obstante a guerra, o Iraque é um país muito menor e de população mais diminuta do que a brasileira. Uma comparação séria teria que ser com os EUA, onde existe uma população civil fortemente armada, com baixíssimas taxas de criminalidade relativamente àquelas verificadas no Brasil dos bons cidadãos desarmados. Portanto seu é argumento desonesto.

“Sabemos, ademais, que armas compradas por cidadãos honestos vão parar, muitas vezes, nas mãos de bandidos. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informa que, entre 1993 e 2000, mais de 100 mil foram roubadas, furtadas ou perdidas”. Ora, armas dos policiais também vão parar na mão de criminosos. Lamarca roubou muitos fuzis do Exército e nem por isso pensou-se em proibir seu porte por parte dos militares. Outra falácia.

A falácia final: “Conclamo aqui, então, a que façamos o que está ao nosso alcance para que se possa chegar mais longe. Não se trata de uma panacéia para jogar nos ombros do cidadão de bem uma responsabilidade do Estado. Ao contrário, trata-se de convocar esse Estado para que recupere o monopólio do uso da força, como prevê, de resto, a Constituição, levando, assim, paz ao cidadão”. Ora, o Estado tem o monopólio da força apenas enquanto expressão jurídica, uma declaração solene. Todos e cada um “têm a força”, dentro da sua limitação. O monopólio do Estado jamais quebrou o crime organizado, por exemplo, que implantou um regime de guerra civil no Rio de Janeiro. Jamais impediu os arrastões aos prédios em São Paulo, os assalto a bancos. Declarações solenes não têm poder de mudar a realidade e a realidade é que a ação estatal para proteger o cidadão de bem é limitada. Ele, o cidadão, é a sua primeira linha de defesa. Quando esta vem a falhar o custo em geral é a sua vida e a dos seus familiares, como vimos acontecer recentemente na família de origem japonesa residente na periferia de São Paulo, tragicamente trucidada por bandidos armados com armas de fogo de porte ilegal.

A polícia, regra geral, chega depois dos fatos acontecidos e nada tem a fazer. Voto 1, pelo “não”. Serra está completamente errado.


José Nivaldo Cordeiro é economista e mestre em Administração de Empresas na FGV-SP.

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