Denis Lerrer Rosenfield
Estamos, provavelmente, diante de uma das maiores farsas da História republicana.
A segurança pública está em frangalhos e há toda
uma campanha em curso para desarmar os cidadãos deste país, como
se eles fossem os verdadeiros responsáveis pela criminalidade existente.
O narcotráfico, o crime organizado e a corrupção sistêmica
se alastram, enquanto nossos governantes põem em cena uma grande simulação,
tendo como objetivo ocultar o que realmente acontece em nossas cidades e em nosso
cotidiano. Vende-se a falsa idéia de que o desarmamento será um
poderoso fator de redução da criminalidade, nada sendo, no entanto,
feito para que suas causas e seu modo de operação sejam realmente
afetados.
Políticos ditos de 'direita' e de 'esquerda' se amalgamam como se fossem
os arautos do progresso, numa bizarra confusão ideológica que mostra
o quanto essas velhas distinções estão desgastadas. Ser
contra o desarmamento foi tornado equivalente a ser 'bárbaro' ou 'troglodita',
acuando os defensores da liberdade pessoal a uma posição defensiva.
Poderse-ia também utilizar o argumento contrário: os que defendem
o desarmamento estariam defendendo os criminosos, pois estes não serão
minimamente atingidos por essas medidas.
Como
deveriam ser chamados: cúmplices? Um pouco de honestidade não
faria mal ao debate.
Primeiro,
salta aos olhos, salvo para os que não querem ver, que o crime
organizado independe do tipo de arma que os cidadãos de bem têm
para sua defesa própria. O seu armamento é muito mais sofisticado
e poderoso, além de não ser comprado em 'lojas' normais, dessas
que vendem equipamentos de caça e pesca. O seu armamento, muitas vezes, é superior
ao utilizado pelas Polícias Militar, Civil e Federal, que não têm
recursos necessários para a aquisição do que, para elas, é um
mero instrumento de trabalho.
O
que o atual governo e seus aliados estão fazendo consiste em desarmar
pessoas que ficarão à mercê de meliantes, pois não
poderão contar, com o grau de eficiência devida, com os órgãos
de segurança pública. A Lei do Desarmamento, como tantas outras
em nosso país, dificilmente pegará, de modo que se criará a
seguinte situação esdrúxula: os cidadãos de bem deverão
aprovisionar-se de armas junto aos delinqüentes e criminosos, num mercado
negro que florescerá, dando maior força ainda à criminalidade.
Enquanto isso, seguiremos ouvindo discursos ocos sobre o desarmamento,
como se a criminalidade estivesse sendo finalmente reduzida.
Imaginem,
juridicamente, uma ocorrência do seguinte tipo. Um criminoso
invade uma residência, fere ou abusa sexualmente de seus ocupantes e, num
descuido, perde o controle da situação, com um membro da casa fazendo
uso de uma arma 'ilegal', ferindo ou matando o invasor. Será ele, então,
responsabilizado criminalmente pelo uso indevido de uma arma? Teremos mais uma
campanha pelos direitos humanos dos criminosos? Ou talvez o criminoso, tendo
sido apenas ferido, vá depois processar o proprietário ou proprietária
da casa pela posse indevida de armas? A situação seria hilariante,
não fosse verdadeira.
Se
há um ponto sobre o qual todos os pensadores do Estado estão
de acordo é o que diz respeito à segurança pública.
A função primeira do Estado consiste em assegurar aos seus membros
a paz pública, sem a qual a vida, a integridade do corpo e do patrimônio
estão ameaçadas. Ora, o que observamos em nossas cidades é o
desenvolvimento da segurança privada, que, na verdade, só está ao
alcance das pessoas mais bem aquinhoadas socialmente.
Os
outros ficam literalmente na intempérie, não podendo contar
com um Estado que lhes dê a mínima garantia. Temos dois desvios
de monta: a privatização da segurança para os que podem
e a insegurança generalizada para os demais.
Se
a paz pública reinasse, não teria o cidadão por que se
preocupar com sua segurança pessoal. Contudo, se o Estado se mostra incapaz
de exercer essa função essencial, cabe ao indivíduo ocupar-se
de sua própria segurança. Se fizer uso indevido de uma arma, ele
deve ser por isso responsabilizado, como ocorre normalmente com qualquer ação.
Não é porque presidiários usam celulares na prisão
para organizarem suas quadrilhas que os celulares serão proibidos. No
entanto, o que estamos vivendo é um imenso contra-senso.
Há, porém, uma questão muito mais grave ainda, e ela diz
respeito ao cerceamento da liberdade. O Estado está-se imiscuindo na esfera
da liberdade de escolha de cada um, impondo um parâmetro de conduta que
amortece a responsabilidade individual. Um dos maiores ganhos da civilização
reside na liberdade de escolha, cada indivíduo podendo avaliar e decidir
o que é melhor para si, sem
TEREMOS
MAIS UMA CAMPANHA PELOS DIREITOS HUMANOS DOS CRIMINOSOS? |
que
uma instância coletiva o impeça de exercer
esse direito básico.
Se determinada pessoa escolhe ter uma arma, ela deve ser respeitada como algo
próprio de sua esfera privada. Dentro de sua casa, por exemplo, ela tem
todo o direito de se defender de qualquer invasor externo. Ela não é criminosa
nem comete um delito qualquer por ter uma arma, que pode ser utilizada para sua
defesa, para o exercício de um esporte ou por hobby. Se fizer uso indevido
dessa arma, será igualmente julgada por isso e o Código Penal prevê perfeitamente
esses casos.
O
que está, portanto, em questão é a liberdade enquanto
tal. Defender o desarmamento dos cidadãos de bem (e dar livre trânsito à grande
bandidagem) é um ato de extrema irresponsabilidade. Enquanto nada ou muito
pouco é feito em termos de uma efetiva reforma da segurança pública,
cria-se um grande factóide, como se os discursos e a demagogia fossem
capazes de assegurar a integridade de cada um. Por que os partidários
do desarmamento das pessoas de bem não usam o mesmo ardor e os mesmos
recursos para desarmar, prender e julgar os criminosos, a começar pelo
crime organizado??
Denis Lerrer Rosenfield é professor
de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br