O inimigo é a
violência
Almir Pazzianotto Pinto
Em
vez de empreender medidas fortes voltadas para a
redução da violência, o governo
federal desencadeia campanha destinada a retirar
armas de fogo que se encontram em poder de pessoas
de bem. O referendo do próximo dia 23 tenta
inverter os valores morais da sociedade brasileira.
Aos bandidos, tudo; ao cidadão que paga impostos,
nada.
Explico-me.
O que provoca temor-pânico na sociedade
não é a propriedade de arma de calibre
reduzido, por mínima porcentagem da população,
mas, sim, a onda de insegurança e de crueldade
que assola famílias bem constituídas
de todas as camadas sociais.
São exemplos da carnificina que nos amedronta
e apavora os casos da família morta a tiros
e golpes de enxada, por facínoras, para roubarem
alguns mil dólares, economizados durante anos
de sacrifícios no Japão; do menino seqüestrado,
amarrado e jogado em represa para morrer afogado; de
criminosos, em regime de reclusão, degolados
em brigas de quadrilhas, dentro da penitenciária;
do vigilante escolar abatido no estabelecimento de
ensino em que trabalhava; do fazendeiro gravemente
ferido ao reagir a tentativa de assalto, no interior
da sua propriedade; de delegado e investigadores espancados
por prisioneiros, em fuga de distrito policial; da
população de pequeno município
do Pará que, revoltada com a onda de estupros,
e a ausência de providências do Estado,
depreda e põe fogo em prédios e veículos
públicos; dos conflitos entre torcidas, dentro
e fora dos estádios.
Afora crimes
como esses, escolhidos aleatoriamente nas notícias da imprensa, inúmeros casos
de crueldade se estão repetindo, e não
despertam a atenção, porque passaram
a fazer parte do cotidiano. Por outro lado, dando divulgação à violência,
jornais publicam, emissoras de rádio noticiam,
televisões, abertas e a cabo, transmitem novelas,
minisséries, filmes e reportagens que têm
como enredo homicídios, traições,
estelionatos, adultérios, arbitrariedades e
truculências, passando uma imagem de sociedade
decadente e corrompida. Há, até, o "rei
do videogame sangrento", como publicou o Estado,
no caderno Link de 24 de setembro.
Morre-se
mais em acidentes de trânsito do que
por assassinato. A ninguém, todavia, ocorre
proibir a venda de veículos.
Desde épocas remotas, para se proteger contra
múltiplas formas de hostilidades e ataques,
o ser humano aprendeu a construir abrigos, levantar
paredes, abrir fossos e a se munir de algum instrumento
de defesa. Da pedra ao porrete, à lança,
ao escudo, ao arco e flecha, aos machados, espadas,
até inventar a pólvora e as armas de
fogo.
A velha
garrucha, de um ou dois canos, está entre
os mais antigos desses artefatos, e pode ser fabricada
em oficinas de fundo de quintal. Na Guerra de Canudos,
descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões,
tropas do Exército, equipadas com canhões
Krupp, metralhadoras Nordenfeldt, fuzis Comblain e
Manlicher, foram batidas por esfarrapados jagunços
de Antonio Conselheiro, munidos de bacamartes, clavinotes,
lazarinas, punhais e facas. Artefatos rudimentares
como esses sobrevivem em nossos dias, e podem servir
a intentos criminosos, independentemente de aquisição
registrada e controlada. Veja-se a notícia publicada
nos jornais de São Paulo: "Trio é preso
e confessa assassinato de taxista." Foram usadas
duas armas de fogo de fabricação caseira,
apreendidas pela polícia.
Até o ministro da Justiça, Márcio
Thomaz Bastos, admite que a campanha será inócua
contra os marginais. Não conseguirá,
também, acabar com furtos e desvios de armamentos
em quartéis e arsenais. Os delinqüentes
encontrarão caminhos internos e externos para
adquirir pistolas, granadas, metralhadoras. O contrabando
continuará a ser utilizado para equipar o crime
organizado, e fornecer a artilharia pesada de que se
valem, nos morros do Rio de Janeiro, quadrilhas de
narcotraficantes.
Registre-se,
ademais, que aos empresários de
alto poder aquisitivo pouco importa o referendo. Eles
se protegem com veículos blindados, construindo "bunkers",
contratando empresas de segurança.
A iniciativa
do governo tem cunho populista-demagógico.
Destina-se a distrair a atenção de graves
problemas de natureza socioeconômica, e fazer
crer, às pessoas mal informadas, que está preocupado
com a vida, a integridade física e o patrimônio
de cada cidadão.
Quem viver
verá. Após o referendo, qualquer
que seja o resultado, a violência continuará presente
em nosso meio, ferindo e matando inocentes, já que
as raízes do problema são outras. Não
se localizam na compra de revólver, de calibre
permitido, para defesa pessoal e da família.
Aponto,
afinal, como ridículo o argumento dos
defensores do "sim", quando aludem a crianças
vítimas de disparos acidentais, dentro das próprias
residências. Neste país, onde o poder
público se tem revelado incapaz de resolver
a tragédia da infância abandonada e carente,
que cheira cola, usa drogas, perambula pelas grandes
cidades, mofa na Fundação Estadual do
Bem-Estar do Menor (Febem), ou definha em condições
subumanas no campo, é hipocrisia apresentar
casos isolados como estandartes de campanha política.
Filiado à corrente que dirá "não",
recordo, àqueles que praticam a fé cristã,
a palavra sagrada da Bíblia: "Quando um
homem valente e bem armado guarda a própria
casa, tudo o que ele tem está seguro" (Lucas,
11:21).
Almir Pazzianotto
Pinto é advogado, ex-ministro
do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do
Trabalho (TST), aposentado