Catolicismo agosto de 1999 - www.catolicismo.com.br Entrevista

Desarmamento: perigos para a Nação

O Tenente Coronel PM do Estado de São Paulo, Jairo Paes de Lira aborda, com sabedoria e equilíbrio, a candente questão do desarmamento, tema exposto em recente Projeto de lei do governo federal

Um assunto que tem sensibilizado a opinião pública nacional é o Projeto de lei que o Executivo federal encaminhou ao Congresso, com vistas a promover o desarmamento da população.

Como a problemática apresenta muita gravidade e merece ser considerada com todo o cuidado pelos brasileiros, em geral, e por nossos leitores, em particular, Catolicismo, além das matérias elaboradas para esta edição pelos Coronéis do Exército Carlos Antonio Espírito Hofmeister Poli e Mário Hecksher Neto a respeito do tema, julgou muito conveniente entrevistar o Ten.-Cel. PMESP Jairo Paes de Lira, Comandante do 3º Bata qlhão de Polícia de Choque.

O entrevistado, brilhante Oficial da Polícia Militar paulista, é um estudioso da questão desarmamento. Tem participado de reuniões e conferências no Exterior, na qualidade de Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

O Ten.-Cel. Paes de Lira recebeu a reportagem de Catolicismo em seu gabinete, no quartel da Polícia de Choque, à rua Amambaí, 9, e foi solicito em responder, com a pertinência e a segurança de um abalizado conhecedor do tema, as perguntas que lhe eram dirigidas.

Catolicismo –O governo federal enviou ao Congresso um Projeto de lei para o desarmamento da população. Qual o seu parecer sobre esse projeto?

Ten.-Cel. PM Paes de Lira –Trata-se de um Projeto de lei pleno de boas intenções: daquele tipo que, segundo a sabedoria popular, pavimenta a estrada do inferno. E veja que credito à iniciativa boas intenções unicamente por recusar-me a admitir que um governo democrático conspire para suprimir dos cidadãos produtivos e amantes do Estado de Direito, em termos práticos, o legítimo direito à autodefesa. Sim, porque todos —e nós, membros da Força Estadual, em primeiro lugar —devem reconhecer que o Estado não consegue garantir, em caráter absoluto, os direitos constitucionais à vida, à integridade física e moral e à propriedade.

O resultado concreto desse mal formulado texto, se vier a converter-se em norma legal, será o desarmamento dos homens de bem, seja porque não tolerarão viver à margem da lei, seja por temor à reprimenda judicial. Já os criminosos, que obviamente desprezam todo tipo de imposição legal, agradecerão e festejarão, pois a pretendida lei virá apenas facilitar-lhes a má vida, afastando boa dosagem do risco que deveria onerar a sua vil atividade.

Digo-lhe com toda franqueza, como Oficial de Polícia Militar e cidadão: a lei atual, de nº 9.437, é fortemente restritiva quanto ao porte, mas realista e razoável quanto à posse domiciliar de arma; o projeto, no entanto, quer instituir uma lei draconiana, a meu ver em franco choque com os direitos civis já citados, além de ser indiscutivelmente expropriatória, já que contém um dispositivo que ameaça privar cidadãos de parte dos seus bens sem o devido processo legal, também assegurado constitucionalmente. Ou impor-lhes desapropriação sumária por preço vil, o que dá na mesma.

Catolicismo –Atualmente, a Austrália e a Inglaterra adotam esse tipo de legislação. Que conseqüências ela tem acarretado nesses países?

Ten.-Cel. P. de Lira –Tenho acompanhado, desde um congresso policial de que participei em Haia, em junho de 1998, o caso da Inglaterra, onde as estatísticas mostram brutal inflexão —para cima —da curva de crimes violentos. Veja bem, não estou falando de números absolutos, que são bem inferiores aos do nosso País, mas em índices de criminalidade. E acontece que os índices explodiram, nos últimos cinco anos. E por quê? A resposta, a meu ver, está exatamente na razão direta do armamento dos criminosos e no agressivo aumento do seu atrevimento, e na razão inversa do desarmamento quase total da população em geral, que, como já frisei, reduz consideravelmente o risco da atividade criminosa. O caso da Inglaterra, é claro, não deve ser reduzido a uma fórmula excessivamente simplificada. Não obstante, entendo-o como um dos muitos que se ajustam aos estudos dos professores John Lott e David Mustard, da Universidade de Chicago, sobre a posse de armas pelos cidadãos de bem como fator moderador da violência, e não o contrário.

No tocante à Austrália, conheço apenas os dados que o mesmo professor John Lott deu-nos a conhecer, em recente entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”. Segundo ele, o efeito do desarmamento absoluto da população naquele país-continente resultou em considerável recrudescimento do crime violento, praticado por criminosos habituais, nas ruas das grandes cidades (Sidney e Melbourne em especial) e também nas vastidões rurais, em que as grandes distâncias e as peculiaridades geográficas favorecem o criminoso, já que a legislação local não fez exceção nem mesmo para os fazendeiros e moradores das paragens inóspitas e carentes da presença da força policial.

Catolicismo –Quando entra em vigor tal gênero de legislação, os criminosos são sempre beneficiados pelo fato de utilizarem armamento ilegal?

Ten.-Cel. P. de Lira –Sim, sem dúvida, pois dispõem de todo o gigantesco mercado clandestino para abastecer-se, à margem da lei que desprezam. Não necessitam de indústria e de comércio local regular para isso. É claro que as leis de mercado funcionam também para o submundo. Assim, o preço das armas, devido à menor oferta, subirá para tais consumidores. Só que eles não se incomodarão muito com esse percalço: bastará que intensifiquem as suas investidas contra os já então desarmados “financiadores”.

Aos crédulos que virem na pretendida lei uma mais ativa prevenção de caráter penal contra atividades criminosas, lembro que penas entre um e dois anos de reclusão não assustam bandido. Basta lembrar a recente lei de novembro de 1998, mais uma na fieira das que afrouxaram a execução penal, a estabelecer regime aberto —sim, aberto —para penas até quatro anos de reclusão, independentemente do crime praticado. E quanto às penas mais importantes, de dois a quatro anos de reclusão, previstas na lei atual, essas sim idealizadas para atingir criminosos habituais, simplesmente não são aumentadas no projeto. Portanto, fica claramente delineado o objetivo da proposta: exacerbar a pena que alcançará o infrator eventual, ou seja, na maioria dos casos cidadãos comuns desavisados ou recalcitrantes.

Catolicismo –Os homens honrados ficarão indefesos em face dos criminosos?

Ten.-Cel. P. de Lira –Não! Caberá à Força Pública garantir proteção ao cidadão comum desarmado —e ela, creia-me, o fará.

Mas não me assiste o direito de fantasiar a realidade. Essa proteção nunca chegará ao absoluto —inatingível por definição. A complexidade do panorama dos grandes aglomerados urbanos, as deficiências estruturais, a decadência moral e os fatores sociais criminógenos têm favorecido o crescente e incontrolável ingresso de pessoas naquilo que costumo chamar de “mercado do crime”. De fato, são tantos os criminosos habituais e oportunistas em atividade que nem mesmo as quatro mil e oitocentas prisões de pessoas em flagrante delito, efetuadas por mês pela Polícia Militar, produzem resultados descendentes sensíveis nos índices de criminalidade, no Estado de São Paulo.

Outro fator preocupante é o decréscimo do potencial da polícia, igualmente embutido no projeto. É que o texto proíbe também aos policiais possuir armas de fogo, abrindo caminho para iniciativas infelizes como a do governo socialista do Rio Grande do Sul, cujo Secretário de Segurança, Sr. José Paulo Bisol, vem de vedar, por portaria, o porte de arma por policiais, fora do estrito horário previsto em escala de serviço. Com a provável generalização de tais medidas, os policiais não somente ficarão indefesos ante a sanha vingativa de criminosos, mas também perderão a capacidade de aderir lealmente ao serviço, estando de folga, frente à iminência ou à eclosão do crime, como, para benefício da sociedade, ainda é tão comum entre os cidadãos em armas que compõem as fileiras da Força Estadual Paulista.

Catolicismo –Ao invés de diminuir a criminalidade, o desarmamento ocasiona um aumento desta, por que representa um incentivo ao crime? E isto porque os bandidos sabem que não encontrarão resistência proporcional?

Ten.-Cel. P. de Lira –Esta é exatamente a tese de Lott e Mustard, cientificamente provada no seu estudo denominado Crime, Deterrence and Right-to-Carry Concealed Handguns.

Eu concordo com as conclusões dos dois ilustres acadêmicos. Não por “afinidade ideológica”, digamos assim. Afinal, John Lott e David Mustard não são, e nunca foram, homens de armas: o primeiro ensina na Faculdade de Direito e o segundo milita no Departamento de Economia da citada universidade americana. Minha concordância resulta do estudo aprofundado a que submeti o mencionado texto, durante a preparação da minha tese referente ao Curso Superior de Polícia. Os autores convenceram-me da sua honestidade científica, pois concluíram e reconheceram que a contrapartida da redução dos crimes violentos, em cidades onde os cidadãos de bem podem portar armas de defesa, é o aumento dos crimes não-violentos. Não houve, portanto, manipulação de dados. O que importa é o ganho social representado pelo decréscimo da violência experimentada: sofrer um furto é muito menos traumático, para a vítima individual e para a sociedade, do que sofrer um roubo à mão armada.

Lott e Mustard concluíram que a permissão legal para que cidadãos de bem, sem antecedentes criminais, portem armas, reduz sensivelmente os crimes violentos e produz um incremento de apenas meio por cento no índice de mortes acidentais por armas de fogo. Este último, socialmente tolerável, frente ao decréscimo estimado de 1.500 homicídios, 4.000 estupros e mais de 60.000 roubos à mão armada. Os números que apresento são aproximados, pois cito-os de memória, e referem-se, é claro, ao ambiente estudado –os Estados Unidos da América. Os pesquisadores lavraram o seu estudo sob a ótica econômica, como é natural, concluindo também que a permissão legal em questão resulta em ganho anual estimado de seis bilhões de dólares.

Onde a lógica disso? É simples: o crime violento tem de ser, eu digo que é imperativo sê-lo, atividade de alto risco para o agente. É uma atividade eminentemente econômica. O criminoso armado, embora talvez sem consciência da teoria, age em consonância com ela: se o risco é baixo, ou nenhum, arrisca a empreitada; se o risco, no caso representado pelo potencial de autodefesa armada da vítima, é elevado, ele atende ao estímulo, considera a relação custo-benefício e vai em busca de alvo mais fácil. Nessa linha de raciocínio, sendo raros os “patos sentados”, o delinqüente acaba por optar pelo crime patrimonial de destreza, de oportunidade ou de astúcia, em que o potencial de confronto tende a zero.

Outro estudo, de Wright e Rossi, da Universidade de Massachusets, confirma a tese de Lott e Mustard, a partir de insuspeitas entrevistas com criminosos condenados por roubo à mão armada.

Catolicismo –Quais as medidas convenientes e mais acertadas para combater a criminalidade crescente no Brasil?

Ten.-Cel. P. de Lira –O caminho não é o proposto pelo Projeto de lei. Em termos de controle, a existente lei nº 9.437 é suficiente nos seus mandamentos, mas pouco eficaz quanto ao comércio ilícito de armas, como aliás reconhece o próprio Ministro da Justiça, Dr. Renan Calheiros, na exposição de motivos nº 293, que encaminha o projeto.

Ora, o controle fracassou não por ações dos cidadãos respeitadores da lei, mesmo os armados. Fracassou, isto sim, pela crescente atividade e pela incontrolável arrogância dos grupos de extermínio, dos traficantes de entorpecentes e das quadrilhas de assaltantes à mão armada. Há de admitir-se a parcela de culpa que toca à deficiente repressão. Mas o que garante que a pretendida lei mudará tal quadro de situação? Rigorosamente, nada! Ao contrário, os estudos isentos e a observação da realidade cotidiana indicam exatamente o contrário. Aliás, Wright e Rossi, no seu citado estudo, afirmam que 88% dos criminosos obtêm armas de fogo apesar de todas as restrições legais, independentemente da eficácia preventiva e repressiva da polícia.

A criminalidade deve-se combater em três frentes: a social, a legal e a moral, sendo a última mais importante e mais difícil de retomar e de consolidar. A frente social é de responsabilidade do Estado, que deve investir maciçamente em programas de emprego, educação e saúde, como forma de combate ao crime miúdo e aos acenos do narcotráfico, que coopta crianças e adolescentes carentes para as “tarefas de apoio”, transformando-as logo em seguida em seguranças armados do ilícito comércio, pagando-lhes salários a que dificilmente teriam acesso no mercado formal de trabalho. Fala-se muito do sucesso de New York na redução dos índices criminais, mas ele não ocorreu por acaso, nem da noite para o dia. Foram necessários 10 anos de “tolerância zero”e de pesados investimentos em equipamentos urbanos, lazer assistido, saúde, educação e política de pleno emprego, tudo secundado por importantes programas de combate ao uso de drogas pela juventude.

A frente legal, também de responsabilidade do Estado, deve abranger os esforços da polícia, da justiça e do sistema prisional, integradamente. Na esfera policial, o Estado deve investir na qualificação cada vez maior dos recursos humanos, evitando cair na armadilha quantitativa —qualidade é a palavra-chave. Deve investir em tecnologia. Mas acima de tudo zelar pela auto-estima dos membros da polícia, ao invés de tratá-los como agentes públicos de segunda classe, ou sinalizar à sociedade que apenas os tolera, como a um mal necessário. Na esfera da justiça criminal, as metas devem ser idênticas, adicionando-se a elas a necessária aproximação do sistema de persecução criminal (Judiciário e Ministério Público) do cidadão comum. É imperativo prover celeridade aos procedimentos, abolindo formalismos que só atendem aos interesses dos criminosos, patrocinados por maus advogados —contratados e pagos semanalmente com produto de ilícitos de toda sorte. Ainda no que toca à justiça criminal, o crescente afrouxamento da lei, sistematicamente elaborada e votada atendendo a conveniências de política criminal, voltadas para o esvaziamento das prisões a todo custo, em nada ajuda: trata-se de uma tendência equivocada, digo mesmo pseudo-social, que deve ser freada, em prol dos interesses da verdadeira cidadania.

A frente moral é fundamentalmente de responsabilidade do indivíduo, enquanto ser social ético, dotado de superior centelha divina. Há que combater-se a decadência moral, a ausência de valores familiares, a perda do sentido de solidariedade , culminando na falta de fé, componentes de um quadro de carência espiritual tendente a brutalizar as pessoas. A banalização da violência, a corrida desenfreada aos bens materiais e o escapismo das drogas vêm produzindo em todo o mundo o fenômeno da criminalidade por livre opção. Minha observação pessoal, como profissional, permite-me concluir que o crime resultante de fatores criminógenos de raiz social é hoje categoria residual. A maioria dos criminosos violentos está no “mercado do crime”porque assim quer; porque deseja a posse dos bens disponibilizados pelo sistema produtivo ocidental, mas não deseja esforçar-se por obtê-los de modo honesto, vinculado aos princípios cristãos. Eles querem tais bens: portanto vão tomá-los de quem os tem, pouco se importando com os direitos alheios, com a lei dos homens ou a Lei de Deus.